A criança continuava perambulando por ali Ora sorria e brincava, ora reclamava, chorava Ela acende a luz do quarto porque ainda tem medo do escuro Lais se incomoda com a menina, mas não interfere em nada Sabe que seu alicerce se rompeu muito cedo E por conta disso, ela se sente aleijada Se identifica muito com a menina porque também Não teve modelos e nem referências Se sentia um ET por se achar tão estranha E tão diferente das outras crianças Lais se esquece um pouco daquela criança Quando de repente descobre cores e sons Mergulha fundo nesse novo mundo e se percebe interessante Também percebe que sua boca é bonita A menina lhe chama, mas Lais não ouve Porque se distrai também com desenhos e ritmos Na sequencia grita, abre os braços e lhe pede colo Mas Lais nega pela primeira vez depois de muitos anos Enquanto a criança esperneia, Lais esboça um assovio E percebe sua boca funcional e versátil Já não chora mais com dó da menina Nem de si mesma e aprende a sonhar de verdade A pequena berra em desespero Mas Lais a ignora Já não quer mais contemplar o abismo que ela lhe mostrou Aos poucos o desespero da menininha vai se dissipando Assim como a melancolia de Lais Ela engole o choro ao notar que Lais agora canta Cantando, compreende a diferença Entre o complexo de inferioridade e a humildade E solta a voz, mesmo desafinando Encontra seu calcanhar de Aquiles e o esconde como um ator Abusa do silêncio porque sabe que a boca Tem o poder de dar a vida e a morte Aprende a acalmar a criança assustada Que agora já enfrenta o quarto escuro e cochila Seus lábios antes submissos agora querem beijar Ansiosos, são mordidos numa fissura inédita Porém suas ideias ainda atropelam suas ações Pobre de argumentos mas rica de sentimentos Inconscientemente imita a menina Num movimento de abrir os braços Pra recepcionar a população que almeja acolher E insiste em querer decifrar universos que lhe tocam diariamente E se antes não degustava as pequenas guloseimas Que sempre estavam disponíveis, agora quer experimentar Todos os sabores que a vida pode oferecer Questiona suas paixões por pessoas e coisas E já não insiste tanto em querer dar o que não tem a quem não quer Como a criança não mais lhe tortura Lais se desvencilha do solo e resolve abraçar o mundo Exercita o perdão como quem bebe água Não economiza sua resiliência e saliva até com o inacessível Enxerga sua boca como uma artista multifacetado E com ela sorri, xinga, recita, canta, beija, discursa, cospe Cospe finalmente na cara do medo A criança agora dorme em paz